sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Teorema de Monsky.

Você sabe como dividir um quadrado em dois triângulos de mesma área? Claro que sabe! Dividir um quadrado em três triângulos de mesma área também não deve ser difícil, certo? Espero que você não tenha tentado fazer isto, pois isso não só é difícil como é impossível! Tente dividir o quadrado em quatro triângulos de mesma área. Novamente, isto não parece ser desafiante. Mas tente em cinco pedaços... Em seis... Ok. Você já deve ter chegado a conclusão que em partes pares, o problema não é difícil (veja a figura abaixo), mas em partes ímpares, talvez seja impossível.


De fato, não existe maneira de dividir o quadrado numa quantidade ímpar de triângulos de mesma área. A primeira pessoa a observar isto foi Fred  Richman (1965)[1]. Ele estava preparando um exame de mestrado e queria incluir este problema, mas ele não pode resolvê-lo. Ele então propôs este problema na American Mathematical Monthly. Cinco anos depois, o matemático americano Paul Monsky (foto abaixo) publicou uma prova. Hoje, conhecemos este resultado como Teorema de Monsky.





Teorema de Monsky. Não existe maneira de particionar um quadrado em uma quantidade ímpar de triângulos todos de mesma área.
A prova deste teorema é única. Não se conhece nenhuma outra prova. O mais incrível é que a prova deste teorema de caráter geométrico reúne ideias de teoria dos números, álgebra abstrata e combinatória. De fato, uma das ferramentas chave na prova deste teorema é o conceito de valor $p$-ádico e uma versão da prova do lema de Sperner.  Neste post, veremos tal prova.



Seja $K$ um corpo. Uma valorização (em inglês, valuation) é uma função $\phi: K \longrightarrow \mathbb{R}$ com as seguintes propriedades:
  1. $\phi(a) \geq 0,$
  2. $\phi(a) = 0 \Leftrightarrow a = 0,$
  3. $\phi(ab)= \phi(a)\phi(b),$
  4. $\phi(a+b) \leq \max\{\phi(a),\phi(b)\}.$
A quarta propriedade é conhecida como propriedade não-Arquimediana. Observe que, pela propriedade 3, $\phi(1) = \phi(-1) = 1$ e que $\phi(-a) = \phi(a)$, $\phi(a^{-1}) = \phi(a)^{-1}$. E como consequência destes fatos e da propriedade 4, temos
Se $\phi(a)\neq \phi(b)$, então $\phi(a+b) = \max\{\phi(a),\phi(b)\}$.
De fato, podemos supor $\phi(a) < \phi(b)$ e a propriedade 4 nos retorna $\phi(a+b) \leq \phi(b)$. Por outro lado,
$$\phi(b) = \phi(a+b-a) \leq \max\{\phi(a+b),\phi(a)\}$$
Como não podemos ter $\phi(b) \leq \phi(a)$, então devemos ter $\phi(b) \leq \phi(a+b)$. Logo $\phi(a+b) = \phi(b)$, como afirmado. Por indução, podemos provar que 
Se $\phi(a) > \phi(b_i)$, para $i=1,\ldots,k$, então $ \phi(a \pm b_1 \pm \cdots \pm b_k) = \phi(a). $
Este conceito de valorização faz parte da teoria da valorização (valuation theory), uma subárea da álgebra abstrata. Indico para o leitor interessado as referências [2,3].  Um exemplo de valorização sobre o corpo $\mathbb{Q}$ é o chamado valor $p$-ádico, que será definido em seguida.

Seja $p$ um número primo. Sabemos que qualquer número racional $r\neq 0$ pode ser escrito unicamente como
$$ r = 2^k \frac{a}{b}, \quad k\in\mathbb{Z},$$
onde $a$ e $b>0$ são inteiros primos com $p$ e primos entre si. Definimos o valor $p$-ádico de $r$ como
$$|r|_p := p^{-k},\quad |0|_p = 0.$$
Deixo a cargo do leitor Verificar que $|\cdot|_p$ é uma valorização sobre $\mathbb{Q}$, i.e., que valem as quatro propriedades de uma valorização. De fato, das quatro, a única que talvez ofereça resistência é quarta propriedade. Deixe-me fazê-la, então. Sejam $r=p^{k}\frac{a}{b}$ e $s=p^{l}\frac{c}{d}$ números racionais com $k\geq l$, ou seja, $|r|_p = p^{-k} \leq |s|_p = p^{-l}$. Então, temos,
$$ |r+s|_p = \left|p^{l} \left(\frac{p^{k-l}ad + bc}{bd}  \right) \right|_p = p^{-l}\left| \frac{p^{k-l}ad + bc}{bd}  \right|_p  = p^{-l} = \max\{|r|_p,|s|_p\}.$$ 
Portanto verifica-se a propriedade 4.

Veja que a princípio, o valor $p$-ádico está definido somente para números racionais. Mas, de fato, podemos estender o valor $p$-ádico para todo o conjunto dos números reais. Este fato é conhecido como Teorema de Chevalley e é uma consequência do axioma da escolha (veja [2]). Na prova do teorema de Monsky, assumiremos este resultado.

No que segue, estaremos particularmente interessados em $p=2$. Neste caso, temos uma propriedade adicional:
\begin{equation} \text{para $n$ inteiro ímpar, temos} |n|_2 =1 \end{equation}
Agora podemos partir para a demonstração do teorema. 


Demonstração do Teorema de Monsky. Podemos considerar o quadrado $S$ de vértices com coordenadas certesiana $(0,0),(1,0),(0,1),(1,1)$. É claro que uma vez provado o teorema para $S$ somente, teremos provado para qualquer quadrado. Portanto, como a área de $S$ é igual a 1, qualquer partição de $S$ em $n$ triângulos de mesma área deve ter $1/n$ como a área de cada triângulo. Temos que provar que tal partição não existe para qualquer que seja $n$ ímpar. A ideia central nesta prova é determinar um invariante associado àquelas partições para $n$ ímpar. Este invariante é o valor 2-ádico de $n$, que como sabemos, é igual a 1.

Pois bem, considere a seguinte tricoloração do plano:
$$ (x,y) \text{ é colorido de}  \left\{  \begin{array}{ll} \text{vermelho}, & {\text{se} |x|_2 < 1 \text{ e } |y|_2 <1;} \\ \text{azul}, & {\text{se } |x|_2 \geq 1 \text{ e } |x|_2 \geq |y|_2;} \\ \text{verde}, & {\text{se } |y|_2 \geq 1 \text{ e } |y|_2 > |x|_2.} \\       \end{array}\right. $$

Se estivéssemos tratando da norma euclidiana, ao invés do valor 2-ádico, a coloração do plano tomaria a seguinte aparência:


Ao invés disso, a coloração do plano, segundo o valor 2-ádico, parece embaralhar as cores. Na figura abaixo, ilustramos alguns pontos racionais contidos no quadrado $S$ coloridos segundo o valor 2-ádico. Vale lembrar que pontos não racionais também são coloridos.



Um triângulo é dito tricolor se cada um de seus três vértices recebem cores distintas. O seguinte lema é central na prova do teorema.

Lema. Seja $T$ um triângulo tricolor e $A$ o valor da sua área. Então $|A|_2>1$.
Demonstração. Suponha que $(x_r,y_r)$, $(x_b,y_b)$ e $(x_g,y_g)$ são os vértices de $T$ com cor vermelha, azul e verde, respectivamente. Então a área de $T$ é dada por
$$ A = \frac{1}{2} \left|  \begin{array}{ccc}   x_r  & y_r & 1 \\    x_b & y_b & 1 \\    x_g & y_g & 1 \\  \end{array} \right| =\frac{1}{2} (x_r y_b + x_g y_r + x_b y_g - x_g y_b - x_r y_g - x_b y_r). $$
De modo que
$$|A|_2 = 2 |x_r y_b + x_g y_r + x_b y_g - x_g y_b - x_r y_g - x_b y_r|_2$$
$$ = 2 \max\{|x_r y_b|_2, |x_g y_r|_2, |x_b y_g|_2, |x_g y_b|_2, |x_r y_g|_2, |x_b y_r|_2\}.$$
Afirmo que $x_b y_g$ é o maior dentre os seis termos. De fato, usando a definição relacionada as cores atribuídas a cada vértice, temos

  1. $|x_b y_g|_2 \geq |y_b y_g|_2 \geq |y_b|_2 > |x_r y_b|_2,$
  2. $|x_b y_g|_2 \geq |x_b x_g|_2 \geq |x_g|_2 > |x_g y_r|_2,$
  3. $|x_b y_g|_2 \geq |y_b y_g|_2 > |x_g y_b|_2,$
  4. $|x_b y_g|_2 \geq |y_g|_2 > |x_r y_g|_2,$
  5. $|x_b y_g|_2 \geq |x_b|_2 > |x_b y_r|_2.$
Portanto,
$$ |A|_2 = 2 |x_b y_g|_2 = 2|x_b|_2 |y_g|_2 \geq 2 > 1,$$
como afirmado.  $\square$


Corolário 1. Um triângulo tricolor não pode ter área igual a $\frac{1}{n}$, para $n$ ímpar.
Demonstração. Veja que $|\frac{1}{n}|_2 = {(|n|_2)}^{-1}= 1$, para $n$ ímpar. $\square$

Corolário 2. Toda reta no plano contém no máximo duas cores distintas.
Demonstração. Suponha que tenhamos três pontos de cores distintas sobre uma reta. O triângulo degenerado $T$ cujos os vértices são tais pontos possui área $A$ igual a 0. Portanto $|A|_p = 0 \leq 1$.  O que contradiz o Lema 1. $\square$

Agora já temos em mãos o que é necessário para provar o teorema. Suponha que tenhamos uma partição de $S$ numa quantidade ímpar de triângulos de mesma área. Então sabemos que cada triângulo deverá ter área igual a $\frac{1}{n}$, onde $n$ é ímpar. Pelo Corolário 1 acima, nenhum desses triângulos são tricolores. Mas somos capazes de provar o contrário: pelo menos um desses triângulos são tricolores. Na verdade, somos capazes de mostrar algo mais forte: qualquer partição de $S$ em triângulos possui uma quantidade ímpar de triângulos tricolores. A prova deste fato segue linhas análogas àquelas do Lema de Sperner. De fato, trata-se apenas de uma reformulação do Lema de Sperner.
Afirmação. Toda partição de $S$ em triângulos contém uma quantidade ímpar de triângulos tricolores.
Demonstração. Dada uma partição de $S$ em triângulos, contaremos o número de segmentos do tipo vermelho-azul (com algumas repetições) de duas maneiras. A partir de agora, sempre estará implícito que nos referimos a triângulos na partição de $S$. Da mesma maneira, pontos e segmentos são ferentes àqueles da partição.

Primeiro, suponha que $L$ é uma linha com uma das extremidades vermelha e outra azul. Pelo Corolário 2, $L$ não contém pontos verdes. Então o número de segmentos do tipo vermelho-azul em $L$ é impar. De fato, caminhando ao longo da linha $L$, começamos num ponto vermelho e terminamos num ponto azul. De modo que deve haver uma quantidade ímpar de mudanças de cor entre vermelho e azul ao longo deste caminho. Ou seja, deve haver um número ímpar de segmentos do tipo vermelho-azul.


A linha ligando $(0,0)$ a $(1,0)$ no quadrado $S$ (a linha de baixo) é uma tal linha de pontos vermelhos e azuis. De fato, das quatro linhas na fronteira de $S$, a linha de baixo é a única que contém segmentos do tipo vermelho-azul. Portanto número de segmentos do tipo vermelho-azul na fronteira de $S$ deve ser ímpar.

Agora um triângulo $T$ em $S$ que contém um ponto azul e um ponto vermelho é de um dos tipos: ou é tricolor; ou contém dois vértices vermelhos e um azul; ou contém dois vértices azuis e um vermelho. Se $T$ for tricolor, então somente um de seus lados é composto de pontos vermelhos e azuis e, portanto, o número de segmentos do tipo vermelho-azul em $T$ deverá ser ímpar. Agora, se $T$ for de um dos outros dois tipos, exatamente dois dos lados de $T$ é composto de pontos vermelhos e azuis. E neste caso, cada um dos lados contém uma quantidade ímpar de segmentos vermelho-azul. Logo $T$ contém uma quantidade par de segmentos vermelho-azul

Seja $\pi(T)$ o número de segmentos do tipo vermelho-azul no triângulo $T$. Somando sobre todos os triângulos $T$ em $S$, temos
$$ \sum_{T} \pi(T) = \sum_{T \text{ tricolor}} \pi(T)  + \sum_{T \text{ não-tricolor}} \pi(T) $$
Mas como $\pi(T)$ é ímpar, se $T$ é tricolor, e é par caso contrário, temos que
$$ \sum_{T} \pi(T) \equiv  \sum_{T \text{ tricolor}} 1 \;\; \equiv \;\text{ nº triângulos tricolores} \quad (\mathrm{mod}\; 2).$$
Por outro lado, uma vez que cada segmento vermelho-azul no interior aparece em dois triângulos e cada segmento vermelho-azul na fronteira aparece em um único triângulo, temos que
$$ \sum_{T} \pi(T) = 2\;\times \;\text{ nº segmentos no interior } \;+ \;\text{ nº segmentos na fronteira}.$$
Portanto, uma vez que o número de segmentos na fronteira é ímpar,
$$  \text{nº de triângulos tricolores} \;\equiv \;\text{ nº segmentos na fronteira} \equiv 1 \quad (\mathrm{mod}\; 2).$$
Portanto, o número de triângulos tricolores é impar, como afirmado. $\square$

E isto também conclui a prova do Teorema de Munsky. $\square$


Referências.
[1] Michael Kleber, Ravi Vakil, Sherman Stein. Cutting a Polygon into Triangles of Equal Areas. http://dx.doi.org/10.1007/BF02985395

[2] Nathan Jacobson. Lectures in Abstract Algebra, Volume III: Theory of Fields and Galois Theory. Graduate Texts in Mathematics, Springer, 1st ed. 1964.

[3] Serge Lang. Algebra. Graduate texts in mathematics 211, Rev. 3rd ed. 2002.

[4] Martin Aigner, Günter M. Ziegler, Karl H. Hofmann. Proofs from THE BOOK. Springer, 4th ed. 2009.


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