sábado, 8 de junho de 2013

Teorema da Recorrência de Poincaré.

Jules Henri Poincaré foi um dos mais brilhantes matemático do século XIX (e início do século XX). Considerado por muitos como o último universalista da matemática, devido a sua proeza de conseguir estudar "quase toda" área da matemática. Deixou inúmeros legados em diversas áreas tanto da matemática pura quanto da matemática aplicada.

O teorema que veremos neste post é um dos resultados clássicos em Teoria Ergódica conhecido como Teorema da Recorrência de Poincaré. Minha principal referência é o livro [1], mas indico o livro [2] para um aprofundamento na teoria. Indico também o texto [3] de Ricardo Mañé para algumas aplicações interessantes do teorema.





Considere um espaço de medida finita $(M,\Sigma, \mu)$. Dada uma aplicação mensurável $f:M\rightarrow M$, dizemos que $\mu$ é invariante pela aplicação $f$ se para todo $E\in \Sigma$ mensurável vale que
$$\mu(E) = \mu(f^{-1}(E)). $$

Dada uma propriedade sobre os elementos de $M$, por exemplo "beleza", dizemos que " $\mu$-quase todo" elementos de $M$ possuem esta propriedade quando o conjunto dos elementos que não possuem esta propriedade possuem medida nula, i.e., quando $\mu(\{x \in M: \text{ $x$ não é belo}\}) = 0$.

Vale ressaltar que dado $\{ E_k \}_{k\in \mathbb{N}}$ uma família enumerável de conjuntos mensuráveis disjuntos dois-a-dois, sendo $(M,\Sigma, \mu)$ um espaço de medida, temos que
$$ \mu \left( \bigcup_{k=1}^{\infty} E_k \right) = \sum_{k=1}^{\infty} \mu(E_k).$$


Com isso, já podemos enunciar e provar o 
Teorema (da Recorrência de Poincaré). Seja $f: M \rightarrow M$ uma transformação mensurável e $\mu$ uma medida invariante e finita. Seja $E\subseteq M$ qualquer conjunto mensurável com $\mu(E)>0$. Então, $\mu$-quase todo ponto $x\in E$ tem algum iterado $f^n (x)$, com $n\geq 1$, que também está em $E$.
Em outras palavras, o teorema afirma que quase todo ponto de $E$ regressa a $E$ no futuro. A prova deste teorema até que é simples.


Demonstração, Seja $E_0$ o conjunto dos pontos que não regressam a $E$, i.e.,
$$E_0 = \{ x\in M  : f^{n}(x) \notin E, \forall n\geq 1\}$$
Devemos mostrar que $\mu(E_0) = 0$. Primeiro, observe que $f^{-n}(E_0)$ é disjunto de $f^{-m}(E_0)$ sempre que $m\neq n$. De fato, suponha que existem $m> n \geq 1$ e $x\in f^{-n}(E_0)\cap f^{-m}(E_0)$. Então $y = f^{n}(x) \in E_0$ e $f^{m-n}(y) = f^{m}(x) \in E_0$. Logo $y$ regressa a $E_0$, portanto regressa a $E$. Mas isto contradiz a definição de $E_0$. Isto prova que $f^{-n}(E_0)$ e $f^{-m}(E_0)$ são disjuntos sempre que $m\neq n$.

Agora temos que
$$\mu \left( \bigcup_{n=0}^{\infty} f^{-n}(E_0) \right) = \sum_{n=0}^{\infty} \mu( f^{-n}(E_0)) = \sum_{n=0}^{\infty} \mu(E_0).$$
Na última passagem, usamos que $\mu$ é invariante por $f$, o que implica que $\mu( f^{-n}(E_0)) = \mu(E_0)$, para todo $n\geq 1$, como pode ser verificado facilmente por indução.

Até agora nada usamos da finitude de $\mu$. Pois bem, uma vez que $\mu$ é finita, devemos ter
$$\mu \left( \bigcup_{n=0}^{\infty} f^{-n}(E_0) \right) < +\infty,$$
logo
$$\sum_{n=0}^{\infty} \mu(E_0) < + \infty.$$
Mas este último somatória é constituído de termos constantes, logo devemos ter que $\mu(E_0) = 0$, como queríamos.
$\square$

Como consequência direta deste teorema temos o seguinte
Corolário. Nas condições do teorema acima, temos que $\mu$-quase todo ponto $x \in E$ regressa a $E$ um número infinito de vezes, i.e., existem infinitos valores de $n\geq 1$ tais que $f^{n}(x)$ está em $E$.
Este corolário é as vezes enunciado como o Teorema da Recorrência de Poincaré. De fato, esta versão do teorema é mais útil na maioria das aplicações.

Demonstração.  Seja $E_k$ o conjunto dos pontos que regressam a $E$ exatamente $k$ vezes. Devemos mostrar que $$\mu\left(\bigcup_{k=1}^{\infty} E_k\right) = 0.$$
Para isto, é suficiente mostrarmos que $\mu(E_k) = 0$, para todo $k\geq1$.

Suponha que para algum $k$ tenhamos que $\mu(E_k) > 0$. Então podemos aplicar o Teorema da Recorrência de Poincaré a este conjunto $E_k$. O que obtemos é que quase todo ponto $x \in E_k$ regressa a $E_k$, i.e., $y = f^{n}(x) \in E_0$, para algum $n\geq 1$. Mas uma vez que $y \in E_k$, temos que $y$ possui exatamente $k$ iterados futuros que estão em $E$. Mas como $y$ é um iterado de $x$, temos que $x$ possui $k+1$ iterados futuros que regressam a $E$, contradizendo o fato de que $x\in E_k$. Logo $\mu(E_k) = 0$, de modo que isto é o que queríamos e portanto temos provado o corolário.
$\square$


Uma bela aplicação do Teorema de Poincaré é o seguinte
Teorema (de Kronecker). Quase todo número em [0,1] cuja a expansão decimal começa com o dígito 0 tem infinitos dígitos 0.
Nada há de especial com o dígito 0. De fato, poderíamos trocar o 0 por qualquer outro dígito, por exemplo o 7.

Demonstração. Considere $f(x): [0,1] \rightarrow [0,1]$ definida como $f(x) = 10x (mod 1)$, i.e.,
$$f(x) = 10x - \lfloor 10x \rfloor.$$
Em outras palavras, $f(x)$ é uma translação de uma casa decimal da expansão decimal de $x$. Por exemplo, $f(0,741235) = 0,41235$. De maneira mais geral, temos que $$f(0,a_1a_2a_3\ldots ) = 0,a_2a_3a_4\ldots.$$

Para aplicarmos o Teorema da Recorrência de Poincaré, devemos determinar a medida finita $\mu$ que é invariante por $f$ no conjunto $[0,1]$. Fomos mal intencionados ao enunciarmos o Teorema de Kronecker sem dizermos que o "quase todo" é referente a medida de Lebesgue. Consideramos, então, $\mu$ como a medida de Lebesgue.

Ora, a medida de Lebesgue é finita em $[0,1]$, de modo que só nos resta verificarmos que ela é invariante por $f$. De fato, se considerarmos $E$ como um intervalo, então a pré imagem de $E$ por $f$ deverá ser a união de 10 intervalos disjuntos cada um com $1/10$ do comprimento de $E$ (veja figura abaixo), logo a medida da pré-imagem de $E$ será igual a medida de $E$.  Agora no caso de $E$ ser um conjunto mensurável qualquer de [0,1], temos que $E$ pode ser bem aproximado por união enumerável de intervalos, daí devemos ter que a invariância de $\mu$ por $f$ sobre $E$ deverá valer também. Logo, a medida de Lebesgue é invariante por $f$.




Agora podemos aplicar o teorema: considere $E$ como o conjuntos do números em [0,1] cuja a expansão decimal começa com o dígito 0. Temos que $E = [0,1/10)$. Portanto $\mu(E) >0$. Logo quase todo $x\in E$ regressa a $E$ por $f$ infinitas vezes (pelo corolário). Mas isto é equivalente a dizer que existem infinitos zeros na expansão decimal de $x$, pois se $x = 0,a_1a_2a_3\ldots$ é a expansão decimal de $x$, então
$$ f^{k}(x) = 0,a_{k+1}a_{k+2}a_{k+3}\ldots,$$
e se $f^{k}(x) \in E$, então $a_{k+1} = 0$. Logo, o teorema segue.
$\square$


O Teorema da Recorrência de Poincaré possui uma versão topológica que pode ser encontrado tanto em [1] quanto em [2]. Nestes mesmos livros você poderá encontrar outros teoremas de recorrência. O primeiro livro eu indico para uma rápida introdução em teoria ergódica enquanto que o segundo livro indico para um aprofundamento da teoria.

É isso. Paro por aqui. Até a próxima!

Referências.
[1] Krerley Oliveira. Um Primeiro Curso sobre Teoria Ergódica com Aplicações. 25º Colóquio Brasileiro de Matemática. 2005. (Disponível em http://www.impa.br/opencms/pt/biblioteca/cbm/25CBM/25CBM_14.pdf)

[2]  Krerley Oliveira e Marcelo Viana. Fundamentos de Teoria Ergódica.  (Disponível em http://w3.impa.br/~viana/out/fte.pdf)

[3] Ricardo Mañé. Aspecto Elementares da Teoria Ergódica. Revista Matemática Universitária. Nº 4, 1986. (Disponível em  http://matematicauniversitaria.ime.usp.br/Conteudo/n04/n04_Artigo_03.pdf)





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